Após ler a carta enviada por Kariska, será que Tukã abandonou a aldeia e foi ao encontro de sua amada?
Você vai conferir apartir de agora a segunda e última parte desta emocionante história.
   

"Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida.
E para a Hayuna nada! Tudo!..."

Hayuna estava muito feliz, comemorando seus 18 anos. Finalmente a liberdade! Agora não precisava mais de permissão para sair, e poderia chegar em casa a hora que bem entendesse. Embora seu pai nunca tivesse "pego muito no seu pé", as coisas seriam diferentes agora. A casa estava cheia de amigos. Ganhou vários presentes, inclusive o computador, que há tanto tempo desejava, e que a auxiliaria muito, pois acabara de entrar na faculdade de veterinária. Era apaixonada por animais, assim como sua mãe. Entretanto, não estava feliz. Sentia-se incompleta.

Assim que a festa terminou, subiu ao seu quarto e viu seu pai cabisbaixo, segurando a foto de sua mãe. Parecia estar chorando... Ela queria correr e abraça-lo, compartilhar a sua dor, confessar que, apesar de ter sido uma noite maravilhosa, também estava sofrendo por dentro, em silêncio. Mas exitou por um estante, pois entendia que seu pai precisava de privacidade, e às vezes as pessoas preferem ficar sós, para lidarem com seus próprios demônios. Ficou ali, atrás da porta, observando seu pai, desejando que ele não sofresse.

"Queria que você estivesse aqui, Kariska!"- sussurrou Iraiã, com os olhos cheios d'água, seu olhar cansado e com as "entradas" capilares mostrando toda a sua experiência de vida - "Ficaria orgulhosa de sua filha! Ela tem seu jeito meigo, mas o olhar destemido, definitivamente herdou do pai. Ah, Kariska, se você soubesse como é difícil olhar para ela todos os dias! Não paro um estante de imaginar como seria nossa vida sem Hayuna... Será que teríamos alguma chance? Lamento demais você não tê-la visto crescer, não a tenha pego em seus braços ainda pequena, nem tenha olhado para os seus olhinhos, que desde recém-nascida não negava sua origem... Mas acho que, assim que a tomasse pela primeira vez, teria ido embora para Guinurá..."
Hayuna entra no quarto indignada:

- Pai, que história é essa? Você não gosta de mim? Quer que eu vá embora, quer?
- Hayuna, não é nada disso! Por que estava me espionando? Já não lhe disse que isso não se faz?
- Não mude de assunto! Eu escutei muito bem o que você disse!!! O que é Guinurá, que história é essa de origem e por que você fala de mim, como se eu não fosse sua filha?
- Lá vem você com essas perguntas bobas...
- Bobas nada! Você pensa que eu não noto sua indiferença? - Indiferença? Eu te sustento, Hayuna! Eu te dou roupas, viagens, festas, educação... Uma casa linda dessas, tudo do bom e do melhor! Como você tem coragem de dizer que sou indiferente!?

- Mas não me dá amor, pai! Nunca me fez um carinho... Nunca me levou na praça para brincar no parquinho... Pensa que eu não sofria, vendo todas as minhas amiguinhas com os pais e eu sempre com a babá? Será que já não basta eu não ter conhecido a minha mãe, ainda por cima não posso ter o amor do meu pai!?
- Cale a boca, Hayuna! Você não sabe do que está falando.
- Então me explique, pois não sou mais criança e tenho o direito de saber!
- Chega, Hayuna, chega! Você é uma mal agradecida! Olha só tudo o que eu te dei e você ainda me trata assim? Vá para o seu quarto e me deixe em paz!
- Isso não vai ficar assim! - gritou Hayuna, batendo a porta do quarto.

Aquelas palavras ficaram na cabeça de Hayuna. Não conseguiu dormir naquela noite. Queria saber o que era "Guinurá". Ligou o computador e procurou na Internet. Encontrou uma página, de um açougue da cidade, que comprava os peixes desse lugar.
No dia seguinte, esperou Iraiã sair para o trabalho e foi até o açougue. Lá, pediu informações de como chegar até Guinurá. Voltou para casa, arrumou sua mochila e deixou um bilhete, dizendo para o pai que nunca mais a procurasse, pois ela ia descobrir sua origem.

Pegou o primeiro ônibus até Potirendaba, cidade mais próxima da aldeia. Ficou maravilhada com a paisagem! Não imaginava que ali fosse tão lindo. Soube que Guinurá ficava há uns 5 Km dali. Ela precisava andar rápido, pois logo iria escurecer. Pegou logo a trilha e seguiu em passos ritmados. Quando chegou ao rio, deu uma paradinha para beber um pouco de água. Encontrou um rapaz que parecia ser uns 2 anos mais novo que ela. Alto, forte, bonito. Logo chamou sua atenção.

- Ei! - chamou ela - Você sabe se essa água é potável?
- Ta falando comigo?
- É! Quero saber se essa água é potável.
- Como é, dona?
- Se é de beber!
- Ah, é sim...
- Meu nome é Hayuna. E o seu?
- O meu é Makaã. Ta perdida, moça?
- Na verdade, estou procurando uma aldeia chamada Guinurá. Você conhece?
- Ô! Eu moro lá!
- Puxa, que coincidência! Será que você poderia me levar até lá?
- Ah, não sei não...
- Por quê?

- É que o pessoal lá não gosta de gente tipo você.
- Tipo eu? Nossa, mas você nem me conhece!
- E nem preciso... Você é mais uma daquelas pessoas da cidade grande, que vêm aqui, achando que nós somos ignorantes e que podem facilmente nos enganar. Mas eu vou lhe dizer uma coisa: nós não nos vestimos como vocês, não falamos do jeito que vocês falam e nem damos valor às coisas que vocês dão. Nós somos diferentes sim, mas isso não significa que somos inferiores a vocês, viu moça?

- Nossa, que preconceito, heim?
- Aqui nós não temos brigas, as pessoas não roubam o que é dos outros e não nos preocupamos com dinheiro. Então, pode ir dando meia volta aí, e indo embora, pois daqui você não passa.
- Credo, que hostilidade! E quem é você para me impedir, heim?
- Sou o filho de Tukã, líder da aldeia. E meu pai proibiu gente como você de entrar aqui.
- Pois saiba, mocinho, que eu não sou qualquer uma, viu? Meu pai e minha mãe eram daqui. Eu fugi de casa, peguei um ônibus fedorento, viajei 4 horas nele e não vou sair daqui sem saber onde minha família viveu, ok!?

- Eu, heim, não precisa gritar, viu? Eu não sou surdo! Essa gente da cidade vem aqui e acha que pode fazer e acontecer...
- Olha, deixa disso, pois se meus pais eram daqui, eu sou tão "filha da terra" quanto você. Você pode perceber pelo meu nome: Hayuna. Eu posso não ter nascido aqui, mas nas minhas veias correm sangue do seu povo, entendeu garoto? Então, deixa de ser ranheta e me leve até Tukã, que eu quero ver se ele vai ter coragem de me negar essa visita.

Makaã ficou indignado com o jeito de Hayuna. Decidiu leva-la até seu pai, só para ter o gostinho de vê-la sendo expulsa de Guinurá. Imaginou até a homenagem que seu pai e toda a aldeia fariam a ele pela oportunidade oferecida. Afinal, não era todo dia que o "povo da cidade" peitava um integrante de Guinurá. Ela merecia ser punida. Chegaram na casa de Tukã. Makaã entrou primeiro e explicou a história ao pai, distorcendo os fatos, puxando sardinha para o seu lado. Mas Tukã conhecia as artimanhas do filho e sabia que nem sempre Makaã falava a verdade. Porém, ficou intrigado com a história e sabia que a pessoa em questão só poderia ser filha de Kariska e Iraiã. Por um minuto exitou, pois não queria ver na sua frente a prova concreta da traição de Kariska, mas ao mesmo tempo não poderia negar-lhe um prato de comida e um lugar para passar a noite, pois apesar de ser parte de Iraiã, também era parte de Kariska, seu grande amor.

Tukã caminhou lentamente até a porta. Seu coração queria saltar-lhe pela boca. A mistura de ansiedade e emoção em ver a menina eram maiores do que o remorso que sabia que iria sentir, pois ela poderia ser sua filha. Parou por um instante e pensou que Kariska poderia estar junto. Voltou correndo, olhou-se no espelho e pensou que não gostaria que ela o visse assim, tão envelhecido, afinal já se passavam quase 20 anos desde a última vez que se viram. Foi para o terraço e encontrou Hayuna sentada.
Levou um choque ao vê-la. "Por Kixó, como se parece com a mãe!", pensou. Parecia um deja vu.

- Queria falar comigo? - perguntou Tukã, com a voz meio engasgada.
- Sim! O senhor é Tukã?
- Sou eu mesmo. "Até a voz é parecida", pensou ele. O que você quer, menina?
- Menina, não. Meu nome é Hayuna. Muito prazer - disse ela, estendendo-lhe a mão. Vim aqui por que quero saber sobre minha mãe e meu pai.
- O que quer saber? Pergunte à sua mãe. Não sei no que posso lhe ajudar...
- Eu acho que pode sim. Eu não conheci minha mãe. Ela morreu no parto. Fui criada pelo meu pai, Iraiã. Nunca soube que eles nasceram aqui. Sempre achei que eles tinham uma mania meio hippie, por isso tinham nomes diferentes e me deram esse nome também. Mas ontem, no meu aniversário de 18 anos, flagrei meu pai falando com o retrato de minha mãe e fiquei desconfiada. Por isso estou aqui. Quero conhece-la. E, pelo seu olhar, acho que o senhor a conhecia. Estou certa?
Tukã ficou em silêncio. Seus olhos estavam repletos de lágrimas, mas nenhuma ousou correr por seu rosto. "Hayuna... Por que esse nome? Esse era para ser o nome da nossa filha, não de Iraiã, aquele traidor. Como ela poderia ter 18 anos??? Kariska mentiu quando nos encontramos... Ela já estava com Iraiã..."

- Senhor, está me ouvindo? - insistiu Hayuna.
- Desculpe, moça, estou ouvindo sim. Bom, você veio aqui em busca da verdade, então terá a verdade. Mas não hoje. Venha, está frio. Coma alguma coisa, durma um pouco e amanhã de manhã conversaremos.
"Não pode ser verdade! Kariska está morta! Podia ter deixado tudo de lado e ter ficado com ela, ou tê-la trazido de volta à força! Mas agora é tarde de mais...", pensou Tukã.
Hayuna estava com medo. No início tudo parecia uma grande aventura, mas agora, pensando melhor, foi uma loucura ter fugido de casa, pego um ônibus e ter vindo para este lugar estranho. E aquelas pessoas? Será que são confiáveis? Dormir na casa de um desconhecido... Pensou em fugir, pular a janela e voltar para casa. Iraiã deveria estar preocupado. E se não estivesse? E se sua indiferença fosse tão grande que agora ele estivesse dando pulos de alegria ao saber que ela se foi? Eram tantas dúvidas, que Hayuna mal conseguiu dormir.

Na manhã seguinte Tukã levou Hayuna até a nascente, na estátua de Kixó. Levou consigo a carta que Kariska mandou quando estava na cidade. Contou-lhe toda a história e deixou que Hayuna lesse a carta.
- E o que aconteceu? O senhor foi encontrar com a minha mãe?
- Sim, eu fui. Tomei coragem, enfrentei todos da aldeia e fui buscar Kariska. Mas ela não quis voltar comigo. E eu não podia abandonar todos aqui. Meu pai estava muito doente, desenganado. Eu sou o único filho homem, seria seu sucessor natural. Todos contavam comigo. Não poderia abandona-los. Kariska já tinha se decidido. Fiquei apenas uma noite e voltei na manhã seguinte para Guinurá. Nunca mais soube notícias dela, nem sabia que tinha se casado com Iraiã e que tinha uma filha. Muito menos poderia imaginar que...
Tukã começou a chorar. Pela primeira vez se esqueceu do seu orgulho de guerreiro, de líder da aldeia e deixou que as lágrimas caíssem sobre seu rosto, desabafando toda a mágoa e a angústia que sentiu durante todo aquele tempo. Mas, principalmente, estava triste. Triste porque nunca mais veria Kariska e nem pôde se despedir dela. Triste porque queria ter feito diferente no passado. Queria ter ficado com ela. Ao invés disso, casou-se com uma aldeã, que nem se comparava com ela.

- E meus avós? - perguntou Hayuna.
- Os pais e a irmã de Kariska foram para Potirendaba, logo depois que ela foi embora. Eles não conseguiram mais viver aqui, porque sofreram muitas represálias. Minha mãe faleceu logo depois de meu pai. Não agüentou ficar sem ele.
- E a sua esposa?
- É uma boa aldeã, cuida bem da casa, do nosso filho Makaã e da colheita.
- O senhor a ama?
- Gosto muito dela...
- Mas não é a minha mãe, não é mesmo?
- É... - disse Tukã, abaixando a cabeça.
- Tukã, obrigada por me contar tudo isso. Sei que foi muito difícil. Agradeço sua hospitalidade e tudo o que fez por mim.

Voltaram em silêncio para a aldeia. Chegando à casa de Tukã, encontraram Iraiã sentado na varanda.- Papai! Desculpe ter fugido... - disse Hayuma, abraçando Iraiã.
Ele a afastou.
- O que faz aqui? - perguntou Tukã, bravo. - Você não é bem vindo aqui. Se veio buscar sua filha, leve-a logo e vão embora.

- Calma, Tukã. Vim em paz. Na verdade, o que mais quero agora é viver em paz com a minha consciência. Eu deveria ter feito isso há muito tempo, mas a vaidade e o orgulho me impediram. Eu amava Kariska, mas era você quem ela amava. Nunca pude superar isso e achei que depois do encontro de vocês, eu teria a minha chance. Mas o meu mundo caiu quando Kariska soube que estava grávida. Uma noite, Tukã, uma noite com você... E a minha vida se acabou. Kariska te escreveu uma carta, te contando sobre a gravidez. Jamais a postei. Pensei que se ela nunca recebesse uma resposta, poderia te esquecer. Fiquei ao lado dela durante toda a sua gravidez, dei todo o apoio moral e financeiro, e jurei à ela que cuidaria de Hayuna, como se fosse minha filha. Jurei que jamais contaria a verdade. Aquele era o meu momento, a minha chance e eu a segurei com toda a minha força. Mas recebi o meu castigo por ter mentido, quando perdi Kariska. Além de nunca ter podido consumar meu amor, tive que criar a sua filha, Tukã!

- Desgraçado, como pôde fazer isso!? - gritou Tukã, dando um soco em Iraiã.
- Tudo bem, Tukã, bata! Venha, me acerte novamente! Vamos, eu sei que é isso que você quer e é isso que eu mereço. Mas eu não pude vencer o destino. Ela está aqui, Tukã, sua filha está aqui. Ela voltou para o lugar de onde a mãe dela nunca deveria ter saído!

Iraiã virou-se para Hayuna e disse:
- Hayuna, me desculpe. Não sei se algum dia você será capaz de me perdoar, mas estarei esperando esse dia chegar.
Virou-se e foi caminhando em direção à cidade.
Hayuna e Tukã ficaram observando Iraiã indo embora, até ele desaparecer no horizonte.